Meu amor:
Hoje é apenas mais um dia de todos os dias. Mas os dias vulgares, os dias em que nada se parece passar, são sempre muito bons panos de fundo para homens vulgares como eu quando têm alguma coisa para dizer. Esta é uma carta de amor. A primeira depois de ter passado muito tempo no vale de sombras. E é uma carta de amor escrita para ti. Que pede para ser lida. Que pede para ser guardada. Que pede. Porque qualquer carta de amor, seja ela foleira ou sublime, tem voz activa e tem, imagina só, vontade. Sim, vontade. Aliás, uma vontade conformada pelas palavras que nos tocam, umas mais do que outras, que nos sopram, às vezes ao ouvido, que nos arrastam para um mundo feito de palácios e de jardins. Porque não dizê-lo, e riachos por onde escorrem manifestações da nossa loucura mansa. Ao fim e ao cabo, as várias metamorfoses do amor. E metamorfoses sempre muito enigmáticas mas, precisamente por isso, sempre decifráveis. A verdade é que este género epistolar sempre me fascinou. Eu sempre escrevi muitas cartas de amor. Quando era muito puto comprava daqueles cadernos com folhas azuis e verdes e cheirosas e, às vezes, com um ou outro motivo (normalmente um coraçãozinho ou dois passarinhos íntimos num ramo de uma vulgar árvore) aqui ou acolá, e punha-me a escrever e a escrever. Ah, pois, as cartas de amor que escrevo são longas. Às vezes insuportavelmente longas.
Divago.
Mas tinha de divagar para chegar onde queria chegar. A ti.
Desisto logo à partida de qualquer tentativa de verso. Prefiro a prosa. Conheço-a bem. Entendemo-nos melhor. E temos até alguma intimidade. Já o estilo, esse, podia seguir a tendência do vulgar e transcrever dois ou três poemas de amor bem escolhidos e, porque na verdade assim é, fazer um brilharete. Pessoalmente, prefiro deambular na circunstância. Aqui, sentado em frente do meu computador, ladeado por pilhas de livros e de papel. E umas sombras desenhadas nas paredes do meu quarto. E o cheiro do ramo de pinheiro que trouxe do Campo Grande para estudar os estróbilos. E a vontade de, por momentos, retomar velhos textos que jazem naquela gaveta. E é assim, deambulando que gosto de falar de amor. Do meu amor. Do nosso amor.
Eu não sei o que é o amor. Fica já dito. Nunca o vi. E, por isso, não sei defini-lo. No entanto, assumo a presunção de dizer que apenas sei que o amor é. Sim, o amor é. Neste caso, o amor és tu. Esse teu tudo ao mesmo tempo que incomoda a minha fisiologia e me faz tremer de desejo. Esse teu tudo ao mesmo tempo que é doce de amoras bravas e que, com descaramento, não tem qualquer problema em tornar-se na minha pele. Esse teu tudo ao mesmo tempo, único, sublime, cheio de vida e de formas, onde a linha curva é lei, como se escondesse em si uma simbólica homenagem ao universo curvo de Einstein. Esse teu tudo ao mesmo tempo que se entranha em mim e me faz estatelar docemente contra o céu. E que me tira o sono e a fome e me atira para um limbo existencial, às vezes sem saber muito bem o que fazer a seguir. Sim, esse teu tudo ao mesmo tempo. É o que eu irei sempre responder quando me perguntarem o que mais gosto em ti. Esse teu tudo ao mesmo tempo. Ai eu. Esse teu tudo ao mesmo tempo que me faz falta. OK, eu cedo. Um tudo ao mesmo tempo cheio de perfil de mulher e de pessoa que não se resigna à vontade de poder e que corre ao lado do tempo, sem medo do mais alto mar, sem medo do mais alto céu. Aliás, um tudo ao mesmo tempo que não tem qualquer pudor em olhar o céu e pensar, «A ovelha terá ou não comido a flor?».
Nunca ninguém lutou por quem eu sou. Eis a razão porque perdi sempre. E de todas essas vezes, poucas vezes, vezes demais, recomecei sempre. Às vezes penso, mantermo-nos juntos podia ser uma maneira de dizer: Recomeçamos. Não nos rendemos. Mas isso seria vermo-nos apenas como dois solitários que se tinham encontrado, que na própria solidão tinham uma coisa em comum e assim deixavam de ser solitários, porque se tinham um ao outro. Em certa medida até é verdade mas há ainda a nossa coesão interna que pede para ser inventada a cada impulso de tempo.
Meu amor:
Há uns anos atrás o Mia contou uma história à Clarinha sobre uma árvore curiosa. Os povos Tsonga do Sul de Moçambique consideram o canhoeiro (na língua deles, kanhi) uma árvore sagrada e costumam celebrar a festa dos primeiros frutos no início de Fevereiro de cada ano. Cada uma das famílias da vizinhança é rotativamente encarregada de preparar a festa e convidar os vizinhos. Bebe-se uma bebida fermentada a partir do fruto (que parece um pêssego pequeno e que é muito perfumado). Bebe-se, canta-se e dança-se muito durante três dias. E, segundo dizem os antropólogos, estes dias correspondem a uma certa restauração do caos. Pois bem, esta é uma bela metáfora para a tua entrada na minha vida. Num tempo em que eu julguei ter morrido de amor, esse teu tudo que és ao mesmo tempo e que eu não procurava nem esperava, fez-me beber, cantar e dançar muito, restaurando-me (na verdade, esse processo ainda se desenrola) o caos em que a minha vida se tinha tornado. E, com espanto, me fez voltar a dizer: amo-te. E talvez não imagines a gravidade de tudo isto porque talvez não imagines que nesse tempo em que julguei ter morrido de amor, morri mesmo. Não, não há aqui qualquer narcisismo. Este amor de que te falo tem a medida dos dois. Ah, esse Pablo Neruda, melhor do que ninguém, esclarece: «y por amor seré, serás, seremos». É isso mesmo. «Por amor seré, serás, seremos».
Todas as saudades e ainda mais beijos.
Do teu,
Hoje é apenas mais um dia de todos os dias. Mas os dias vulgares, os dias em que nada se parece passar, são sempre muito bons panos de fundo para homens vulgares como eu quando têm alguma coisa para dizer. Esta é uma carta de amor. A primeira depois de ter passado muito tempo no vale de sombras. E é uma carta de amor escrita para ti. Que pede para ser lida. Que pede para ser guardada. Que pede. Porque qualquer carta de amor, seja ela foleira ou sublime, tem voz activa e tem, imagina só, vontade. Sim, vontade. Aliás, uma vontade conformada pelas palavras que nos tocam, umas mais do que outras, que nos sopram, às vezes ao ouvido, que nos arrastam para um mundo feito de palácios e de jardins. Porque não dizê-lo, e riachos por onde escorrem manifestações da nossa loucura mansa. Ao fim e ao cabo, as várias metamorfoses do amor. E metamorfoses sempre muito enigmáticas mas, precisamente por isso, sempre decifráveis. A verdade é que este género epistolar sempre me fascinou. Eu sempre escrevi muitas cartas de amor. Quando era muito puto comprava daqueles cadernos com folhas azuis e verdes e cheirosas e, às vezes, com um ou outro motivo (normalmente um coraçãozinho ou dois passarinhos íntimos num ramo de uma vulgar árvore) aqui ou acolá, e punha-me a escrever e a escrever. Ah, pois, as cartas de amor que escrevo são longas. Às vezes insuportavelmente longas.
Divago.
Mas tinha de divagar para chegar onde queria chegar. A ti.
Desisto logo à partida de qualquer tentativa de verso. Prefiro a prosa. Conheço-a bem. Entendemo-nos melhor. E temos até alguma intimidade. Já o estilo, esse, podia seguir a tendência do vulgar e transcrever dois ou três poemas de amor bem escolhidos e, porque na verdade assim é, fazer um brilharete. Pessoalmente, prefiro deambular na circunstância. Aqui, sentado em frente do meu computador, ladeado por pilhas de livros e de papel. E umas sombras desenhadas nas paredes do meu quarto. E o cheiro do ramo de pinheiro que trouxe do Campo Grande para estudar os estróbilos. E a vontade de, por momentos, retomar velhos textos que jazem naquela gaveta. E é assim, deambulando que gosto de falar de amor. Do meu amor. Do nosso amor.
Eu não sei o que é o amor. Fica já dito. Nunca o vi. E, por isso, não sei defini-lo. No entanto, assumo a presunção de dizer que apenas sei que o amor é. Sim, o amor é. Neste caso, o amor és tu. Esse teu tudo ao mesmo tempo que incomoda a minha fisiologia e me faz tremer de desejo. Esse teu tudo ao mesmo tempo que é doce de amoras bravas e que, com descaramento, não tem qualquer problema em tornar-se na minha pele. Esse teu tudo ao mesmo tempo, único, sublime, cheio de vida e de formas, onde a linha curva é lei, como se escondesse em si uma simbólica homenagem ao universo curvo de Einstein. Esse teu tudo ao mesmo tempo que se entranha em mim e me faz estatelar docemente contra o céu. E que me tira o sono e a fome e me atira para um limbo existencial, às vezes sem saber muito bem o que fazer a seguir. Sim, esse teu tudo ao mesmo tempo. É o que eu irei sempre responder quando me perguntarem o que mais gosto em ti. Esse teu tudo ao mesmo tempo. Ai eu. Esse teu tudo ao mesmo tempo que me faz falta. OK, eu cedo. Um tudo ao mesmo tempo cheio de perfil de mulher e de pessoa que não se resigna à vontade de poder e que corre ao lado do tempo, sem medo do mais alto mar, sem medo do mais alto céu. Aliás, um tudo ao mesmo tempo que não tem qualquer pudor em olhar o céu e pensar, «A ovelha terá ou não comido a flor?».
Nunca ninguém lutou por quem eu sou. Eis a razão porque perdi sempre. E de todas essas vezes, poucas vezes, vezes demais, recomecei sempre. Às vezes penso, mantermo-nos juntos podia ser uma maneira de dizer: Recomeçamos. Não nos rendemos. Mas isso seria vermo-nos apenas como dois solitários que se tinham encontrado, que na própria solidão tinham uma coisa em comum e assim deixavam de ser solitários, porque se tinham um ao outro. Em certa medida até é verdade mas há ainda a nossa coesão interna que pede para ser inventada a cada impulso de tempo.
Meu amor:
Há uns anos atrás o Mia contou uma história à Clarinha sobre uma árvore curiosa. Os povos Tsonga do Sul de Moçambique consideram o canhoeiro (na língua deles, kanhi) uma árvore sagrada e costumam celebrar a festa dos primeiros frutos no início de Fevereiro de cada ano. Cada uma das famílias da vizinhança é rotativamente encarregada de preparar a festa e convidar os vizinhos. Bebe-se uma bebida fermentada a partir do fruto (que parece um pêssego pequeno e que é muito perfumado). Bebe-se, canta-se e dança-se muito durante três dias. E, segundo dizem os antropólogos, estes dias correspondem a uma certa restauração do caos. Pois bem, esta é uma bela metáfora para a tua entrada na minha vida. Num tempo em que eu julguei ter morrido de amor, esse teu tudo que és ao mesmo tempo e que eu não procurava nem esperava, fez-me beber, cantar e dançar muito, restaurando-me (na verdade, esse processo ainda se desenrola) o caos em que a minha vida se tinha tornado. E, com espanto, me fez voltar a dizer: amo-te. E talvez não imagines a gravidade de tudo isto porque talvez não imagines que nesse tempo em que julguei ter morrido de amor, morri mesmo. Não, não há aqui qualquer narcisismo. Este amor de que te falo tem a medida dos dois. Ah, esse Pablo Neruda, melhor do que ninguém, esclarece: «y por amor seré, serás, seremos». É isso mesmo. «Por amor seré, serás, seremos».
Todas as saudades e ainda mais beijos.
Do teu,
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