domingo, 11 de abril de 2010

XXXIII Congresso do PSD

Por curiosidade fui ver o que se passava no Pavilhão dos Lombos, em Carcavelos. Era o XXXIII Congresso do Partido Social Democrata. Aparte de todo o aparato, confesso que fiquei espantado com o parque automóvel dos senhores congressistas. Jaguar, Mercedes e BMW são algumas das suas marcas preferidas. Bom gosto. Quanto ao novo líder, não sei quem é. Se calhar devia. Mas muito sinceramente não o conheço. Na falta de melhor aproximação, resolvi ler o seu curriculum vitae. Fiquei a saber que o seu nome completo é Pedro Manuel Mamede Passos Coelho e nasceu a 24-07-1964 em Coimbra, é casado e tem três filhas. Até aqui tudo banal. É licenciado em Economia pela Universidade Lusíada. É curioso que, depois de ter falhado a entrada em Medicina por umas décimas, tenha optado por um curso de Economia numa universidade privada (não uma qualquer mas sim a Lusíada). O seu percurso político tem início quando tinha 16 anos de idade, naturalmente pela Juventude Social Democrática. Foi depois deputado à Assembleia da República, vereador da Câmara Municipal da Amadora e presidente da Assembleia Municipal de Vila Real, para além dos vários cargos que foi assumindo dentro do partido. No plano profissional, digamos que o ano de 2004 foi para si decisivo ao mesmo tempo que era igualmente decisivo para Santana Lopes que, depois de as estrelas lhe terem mostrado que um dia viria a ser primeiro-ministro, via assim o seu desejo realizado. Parece que teve sorte. Administrador de várias empresas, em 2007 Passos Coelho é nomeado administrador executivo da Fomentivest (empresa presidida pelo social democrata Ângelo Correia) e presidente da HLC TEJO, SA.
Aparentemente, este currículo não tem nada de mal. Resume o percurso político e profissional de um homem desconhecido do grande público. Mas para quem já viu muita coisa e conhece bem o submundo dos partidos, este currículo não é mais do que uma hiperligação ao conceito tradicional de político, isto é, aquele que faz da política a sua ambição de vida, o seu espaço de realização pessoal e profissional, aquele que vai fazendo o seu caminho pelos meandros do aparelho, conhecendo-o e seduzindo-o, aprendendo as suas engrenagens mais profundas. Porque o aparelho é fundamental no processo de eleição. Porque é justamente este aparelho que manobra a máquina. Aliás, aparelho este que no momento próprio cobrará o seu esforço. Em política não há bondade. Dá-se hoje, espera-se retribuição amanhã. Os profissionais do aparelho, precisamente aqueles que andam por aí a angariar militantes amigos para depois lhes dizer em quem devem votar, que mandam SMS, e-mails e telefonam como se não houvesse amanhã, que perdem horas do seu tempo em pura actividade de caciquismo, sonham já com o dia em que Passos Coelho será eleito primeiro-ministro. Porque para eles, para alguns, será um ano decisivo. O país vive desde há muito de simpatias partidárias. Nada é ilegal. Mas quase tudo é imoral. Os diferentes cargos, quer na vida política quer na vida empresarial, são atribuídos de acordo com critérios muito pouco claros. Não são só ex-ministros e ex-secretários de Estado que são convidados a integrar a administração de grandes empresas ou a ocupar um lugar qualquer em Paris, Londres ou Bruxelas. Mas são também aqueles que se movem agilmente no submundo dos partidos. Porque não tenhamos ilusões. Job for the boys será sempre um código de honra quer no PS quer no PSD.
Eu não tenho opinião sobre o Dr. Pedro Passos Coelho. Justamente porque não consigo ter opinião sobre alguém que desconheço. Mas como não é meu hábito nem dizer mal nem mentir, limito-me a ir olhando para isto. Pode ser que isto dê sorte.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

NA CAIXA DO CORREIO: Fragmentos (II)

De todas as vezes em que me perdi, e em que me soube perder, para que me pudesse encontrar, de todas essas vezes, demasiadas vezes, o medo do escuro polarizava as minhas pálpebras, e os meus olhos nunca fechavam. De todas essas vezes, demasiadas vezes, procurava apenas um canto bem pequenino e bem distante, onde pudesse ficar a olhar os ângulos rectos e as linhas e as cores e as texturas. Agora, hoje, já, de olhos fechados mas sem medo do escuro, longe dos cantos e a provar matematicamente os ângulos, a inventá-los e a desenhá-los, curvando linhas, experimentando cores, tacteando texturas, a imagem que o meu escuro desenha, que é a imagem que o meu ser deseja, é esse teu tudo ao mesmo tempo. E que bem me soube perder, para te encontrar!

NA CAIXA DO CORREIO: Fragmentos (I)

o regresso a lisboa foi feito por barco, a bordo do cacilheiro com destino a belém, com mil e uma medusas lânguidas a visitarem a superfície da grande massa de água esverdeada, um saxofonista pueril a treinar a sua arte junto do local de embarque em Cacilhas, os limites de lisboa a sussurrarem ao rio os seus maiores pecados, uma barquito chamado "Ivone Sara" a cumprir o seu destino com um homem velho de mãos à cintura e um pequeno cão a ladrar na popa como se cumprimentasse quem estava em terra, a ponte a erguer-se em todo o seu esplendor, transmutando-se num grande instrumento musical que vocaliza sons persistentes à medida que os carros percorrem a estrutura metálica, o cheiro da água e do ar a entranharem-se na minha pele e eu ali, na proa daquele cacilheiro, cheio de vontades e de desejos, quase a acreditar que aquilo ia durar para sempre.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Elas preferem-nos grandes

A chamada psicologia evolutiva às vezes tem destas coisas. Apresentam-nos estudos que não explicam nada. Mas que parecem explicar tudo. Não quer dizer que sejam totalmente inúteis. A sua utilidade, e sobretudo a sua validade, é que é altamente questionável. Vamos lá então.

Há dias chegou à minha caixa de correio electrónico mais um conjunto de artigos do jornal online Evolutionary Psychology. Entre eles, um artigo original intitulado Height, Relationship Satisfaction, and Mate Retention. As conclusões são interessantes. Segundo este estudo, as mulheres preferem os homens altos, uma vez que estes são percepcionados como sendo mais atractivos, mais dominantes e de um estatuto superior em relação aos homens baixos. E diz mais: há maior probabilidade de a mulher cometer infidelidade numa relação com um homem baixo.

Pois.

Elas preferem-nos grandes.

Onde é que eu já ouvi isto uma e outra vez?

Para começar, o que eu acho de fascinante neste estudo é que ele consegue chegar à conclusão de que as mulheres preferem os homens altos sem nunca perguntar às mulheres, uma única mulher sequer, se de facto elas preferem os homens altos, ou seja, o objecto de estudo aqui são os homens.

Por outro lado, os participantes deste estudo apresentam uma média de alturas de 178 cm com um desvio padrão de 8 cm num intervalo que vai dos 155 aos 196 cm. Quando olho para a relação linear e quadrática entre a altura e a satisfação na relação, o que eu vejo é que essa mesma satisfação é máxima, na relação quadrática, no valor de altura que corresponde ao intervalo da média de alturas dos participantes (o que me parece normal). Mas vamos até considerar que há significância estatística. E então? Isso significa que as mulheres irão preferir homens cada vez mais altos? Será que daqui a 200 anos a população inglesa de homens medirá 300 cm? E porque se esqueceram das mulheres? O tamanho delas acaso não tem interesse? Acaso o que elas acham sobre isto será um dado insignificante?

O moçambicano Gabriel Mondlane foi considerado o homem mais alto do mundo. Media 265 cm. Casou-se e teve 3 filhos, pelo que se sabe de alturas “normais”. Quando esteve em Portugal, em 1979, para um daqueles espectáculos do insólito bem ao jeito do período medieval, ao subir as escadas do Coliseu dos Recreios, caiu e magoou-se seriamente numa perna. Em Janeiro de 1990 deu uma enorme queda no jardim da sua casa e fez um grave traumatismo craniano, acabando por morrer. Tinha 45 anos. Neste sentido, não vejo qual a vantagem evolutiva dos homens altos. Além disso, e porque não deixa de ser interessante, nunca ouvi falar de mulheres gigantes. Parece que neste negócio resultam melhor as mulheres barbudas!

OK, o estudo pode até não querer centrar-se nos extremos. Mas então centra-se em quê? Num intervalo de 155-196, tem apenas 41 cm. Com uma média de 178, então tem 23 cm para trás e 18 cm para a frente. Considerando os extremos desvantajoso, então de que homens altos estamos nós a falar. De homens com mais de 170 cm? 178 cm? E até que altura? Ou isso não interessa? Estaremos nós a falar de um intervalo ou de um valor absoluto?

O estudo conclui que «os homens altos dizem estar muito satisfeitos com a sua relação e que não apresentam grandes comportamentos de ciúme». Mas reparem nisto. Os homens altos dizem estar… Ora, uma das grandes fragilidades deste estudo é que introduz um enviesamento ao excluir as mulheres. Contudo, esta fragilidade torna-se numa oportunidade. Porque ao introduzir esse enviesamento, dá-nos a oportunidade de percebermos o ponto de vista dos homens em relação a este assunto. E este ponto de vista, alicerçado numa ideia socialmente generalizada de que o tamanho importa, mostra-nos ao fim e ao cabo um preconceito social. Da mesma forma que paira sobre nós essa ideia de que elas preferem os pénis grandes, a verdade é que grande parte dos homens tem um pénis médio e vai ser precisamente essa grande parte dos homens que vai concretizar uma relação. Caso contrário, teríamos sérios problemas demográficos. Parece-me que é este o caso em relação à altura dos homens. Embora o estudo nos mostre que elas preferem os homens altos, e apesar da dúvida sobre o que entendem os autores por homens altos, grande parte dos homens apresenta uma altura média e vai ser essa grande parte dos homens que vai concretizar uma relação. Neste sentido, é preciso relativizar. E, mais importante, não acreditar em tudo o que se diz ou se escreve. Até mesmo num jornal científico.

sábado, 10 de outubro de 2009

Tudo o que és ao mesmo tempo

Bem. Eu tenho quase trinta anos. E nesses quase trinta anos amei poucas mulheres. Quem diz que já amou muitas mulheres é porque tem um coração que mente. O meu não é propriamente um mentiroso mas de vez em quando lá prega as suas partidas. É claro que, quase trinta anos depois, eu já deveria saber que o coração não mente e nem sequer é o coração que se apaixona. Mas faz de conta que é. Assim é melhor.

Ao longo dos últimos anos, eu tenho lido muito sobre os múltiplos estudos que se têm produzido sobre o amor. Estudos muito interessantes em termos de desenho experimental, ou então em termos de resultados. Mas não nutro por eles qualquer simpatia. Não me interessa minimamente saber que zonas do cérebro são activadas quando nos apaixonamos, ou que moléculas químicas entram em acção. Quanto menos soubermos mais amamos. Esta demanda por uma explicação detalhada sobre as maneiras de amar irrita-me. Porque o amor não é objectivo, não se mostra com uma forma que pode depois ser fotografada à escala microscópica. Mas a mania persiste. Façam a experiência. Perguntem lá a qualquer casalinho o que um ama no outro. As respostas serão persistentemente vagas. Ou o cabelo, ou o olhar, ou a cor dos olhos, ou os peitos, ou as ancas, ou o rabo, ou porque sim. Não conseguem ir mais fundo. Acaso não existem mil mulheres com o mesmo cabelo, o mesmo olhar, a mesma cor dos olhos, os mesmos peitos (sobretudo na era do silicone), as mesmas ancas ou o mesmo rabo? Fossem estes os atributos e então estaríamos nós em permanente estado de paixão. Seria o nosso fim. Porquê aquela mulher? Porquê aquela e não outra? Porquê especificamente aquela? Porquê só aquela? Bem, muito honestamente não sei. Não faço a mínima ideia porque é que quando a vejo passar fico sem jeito, ou quando pronunciam o nome dela o meu ritmo cardíaco acelera, ou quando penso nela o meu pénis endurece. Podíamos ir pelo caminho da explicação transcendental (na verdade já me mandaram dar uma curva por eu ter a ousadia de ter nascido em Novembro e ser, imaginem só, do signo escorpião. Que patife que eu sou!) mas não chegamos a lado nenhum. Podíamos até invocar Saint-Exupéry e dizer que nos tornamos responsáveis por tudo aquilo que cativamos e que é neste processo que uma flor, entre mil flores, se torna especial. Agrada-me este caminho, sobretudo porque me agrada Saint-Exupéry. Mas também o único sítio onde chegamos é a um deserto a olhar para o céu. Há ainda os poetas mas esses ainda complicam mais. Há os filósofos mas esses começam com duas perguntas e acabam com vinte e respostas nem vê-las. Há finalmente os cientistas que testam hipóteses, inventariam mecanismos, identificam moléculas, mapeiam regiões, mas também não conseguem passar do como ao porquê. Mesmo a vox pop patina nestes terrenos. Numa casa-de-banho do CCB alguém escreveu na porta poesia autêntica: «amar sem ser amado, é como limpar o cú sem ter cagado». Lamentavelmente também não explica nada porque a técnica dos contrastes aqui não funciona e, além disso, não me parece minimamente atraente concluir que amar e ser amado é como limpar o cú depois de ter cagado (perdão pelo abuso estilístico). Portanto, parece-me que estamos condenados à não explicação.
Mas.
Eu tenho quase trinta anos. E se há coisa que me ficou marcada a ferros é que o amor nunca cede à dúvida metódica. Podem investigar, mapear, identificar, manipular, testar. O resultado será sempre uma decepção. Amar é um mistério. E como todos os mistérios, não tem solução. A todas as mulheres que me perguntaram o que eu mais gostava nelas, eu respondia sempre: tudo o que tu és ao mesmo tempo. Não precisamos de analisar. Não precisamos de objectivar. Não precisamos de racionalizar. Porque a verdade, essa sim analítica, objectiva e racional, é que nunca saberemos tudo nem nunca precisaremos de saber tudo. Não vale a pena escondermos a cabeça debaixo da areia nem fazermos birras de meninos mimados. O importante é mesmo conservarmos em nós a vontade de sermos felizes. Para sempre.

PS. O que é ser feliz? E porquê para sempre? Queremos nós realmente ser felizes para sempre? Vêem como nos lixaram bem lixados? Nunca, mas mesmo nunca saberemos tudo…

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Cartas de amor devolvidas

Meu amor:

Hoje é apenas mais um dia de todos os dias. Mas os dias vulgares, os dias em que nada se parece passar, são sempre muito bons panos de fundo para homens vulgares como eu quando têm alguma coisa para dizer. Esta é uma carta de amor. A primeira depois de ter passado muito tempo no vale de sombras. E é uma carta de amor escrita para ti. Que pede para ser lida. Que pede para ser guardada. Que pede. Porque qualquer carta de amor, seja ela foleira ou sublime, tem voz activa e tem, imagina só, vontade. Sim, vontade. Aliás, uma vontade conformada pelas palavras que nos tocam, umas mais do que outras, que nos sopram, às vezes ao ouvido, que nos arrastam para um mundo feito de palácios e de jardins. Porque não dizê-lo, e riachos por onde escorrem manifestações da nossa loucura mansa. Ao fim e ao cabo, as várias metamorfoses do amor. E metamorfoses sempre muito enigmáticas mas, precisamente por isso, sempre decifráveis. A verdade é que este género epistolar sempre me fascinou. Eu sempre escrevi muitas cartas de amor. Quando era muito puto comprava daqueles cadernos com folhas azuis e verdes e cheirosas e, às vezes, com um ou outro motivo (normalmente um coraçãozinho ou dois passarinhos íntimos num ramo de uma vulgar árvore) aqui ou acolá, e punha-me a escrever e a escrever. Ah, pois, as cartas de amor que escrevo são longas. Às vezes insuportavelmente longas.

Divago.
Mas tinha de divagar para chegar onde queria chegar. A ti.

Desisto logo à partida de qualquer tentativa de verso. Prefiro a prosa. Conheço-a bem. Entendemo-nos melhor. E temos até alguma intimidade. Já o estilo, esse, podia seguir a tendência do vulgar e transcrever dois ou três poemas de amor bem escolhidos e, porque na verdade assim é, fazer um brilharete. Pessoalmente, prefiro deambular na circunstância. Aqui, sentado em frente do meu computador, ladeado por pilhas de livros e de papel. E umas sombras desenhadas nas paredes do meu quarto. E o cheiro do ramo de pinheiro que trouxe do Campo Grande para estudar os estróbilos. E a vontade de, por momentos, retomar velhos textos que jazem naquela gaveta. E é assim, deambulando que gosto de falar de amor. Do meu amor. Do nosso amor.

Eu não sei o que é o amor. Fica já dito. Nunca o vi. E, por isso, não sei defini-lo. No entanto, assumo a presunção de dizer que apenas sei que o amor é. Sim, o amor é. Neste caso, o amor és tu. Esse teu tudo ao mesmo tempo que incomoda a minha fisiologia e me faz tremer de desejo. Esse teu tudo ao mesmo tempo que é doce de amoras bravas e que, com descaramento, não tem qualquer problema em tornar-se na minha pele. Esse teu tudo ao mesmo tempo, único, sublime, cheio de vida e de formas, onde a linha curva é lei, como se escondesse em si uma simbólica homenagem ao universo curvo de Einstein. Esse teu tudo ao mesmo tempo que se entranha em mim e me faz estatelar docemente contra o céu. E que me tira o sono e a fome e me atira para um limbo existencial, às vezes sem saber muito bem o que fazer a seguir. Sim, esse teu tudo ao mesmo tempo. É o que eu irei sempre responder quando me perguntarem o que mais gosto em ti. Esse teu tudo ao mesmo tempo. Ai eu. Esse teu tudo ao mesmo tempo que me faz falta. OK, eu cedo. Um tudo ao mesmo tempo cheio de perfil de mulher e de pessoa que não se resigna à vontade de poder e que corre ao lado do tempo, sem medo do mais alto mar, sem medo do mais alto céu. Aliás, um tudo ao mesmo tempo que não tem qualquer pudor em olhar o céu e pensar, «A ovelha terá ou não comido a flor?».

Nunca ninguém lutou por quem eu sou. Eis a razão porque perdi sempre. E de todas essas vezes, poucas vezes, vezes demais, recomecei sempre. Às vezes penso, mantermo-nos juntos podia ser uma maneira de dizer: Recomeçamos. Não nos rendemos. Mas isso seria vermo-nos apenas como dois solitários que se tinham encontrado, que na própria solidão tinham uma coisa em comum e assim deixavam de ser solitários, porque se tinham um ao outro. Em certa medida até é verdade mas há ainda a nossa coesão interna que pede para ser inventada a cada impulso de tempo.

Meu amor:

Há uns anos atrás o Mia contou uma história à Clarinha sobre uma árvore curiosa. Os povos Tsonga do Sul de Moçambique consideram o canhoeiro (na língua deles, kanhi) uma árvore sagrada e costumam celebrar a festa dos primeiros frutos no início de Fevereiro de cada ano. Cada uma das famílias da vizinhança é rotativamente encarregada de preparar a festa e convidar os vizinhos. Bebe-se uma bebida fermentada a partir do fruto (que parece um pêssego pequeno e que é muito perfumado). Bebe-se, canta-se e dança-se muito durante três dias. E, segundo dizem os antropólogos, estes dias correspondem a uma certa restauração do caos. Pois bem, esta é uma bela metáfora para a tua entrada na minha vida. Num tempo em que eu julguei ter morrido de amor, esse teu tudo que és ao mesmo tempo e que eu não procurava nem esperava, fez-me beber, cantar e dançar muito, restaurando-me (na verdade, esse processo ainda se desenrola) o caos em que a minha vida se tinha tornado. E, com espanto, me fez voltar a dizer: amo-te. E talvez não imagines a gravidade de tudo isto porque talvez não imagines que nesse tempo em que julguei ter morrido de amor, morri mesmo. Não, não há aqui qualquer narcisismo. Este amor de que te falo tem a medida dos dois. Ah, esse Pablo Neruda, melhor do que ninguém, esclarece: «y por amor seré, serás, seremos». É isso mesmo. «Por amor seré, serás, seremos».

Todas as saudades e ainda mais beijos.
Do teu,

Fique com uma caneta do pato Donald, exclamaram eles


O comboio parte da linha 4 do Cais do Sodré exactamente às 22:30. Dez minutos antes, a carruagem foi-se enchendo de gente, de cheiros, de barulhos, de corpos. Gente carregada com sacos e malas e o cansaço do dia. Gente aos pares que fala entre si sobre coisas da vida. Gente só que fala ininterruptamente ao telemóvel. Gente que cerra os olhos. Gente de headphones, mumificada, alheada, distante. Mesmo antes de partir um casal de gente suja percorre os corredores apregoando uma máxima que me desconcertou: Senhor, fique com uma caneta do pato do Donald ou então dê-me uma moedinha. Nem uma coisa nem outra. Não quero ficar com nada. Mas eles, fatigados, continuam a sua jornada como se tivessem sido programados para aquilo. O pato Donald é ali um símbolo de desapego às pessoas. Ficar com a caneta do pato Donald é matar-lhes o negócio. A primeira paragem é Santos. A esta hora não há rápidos. Pára em todas. Por vezes ficamos com a sensação que estamos a caminho do purgatório. Mas não. O mais longe onde este comboio vai, esta noite, é Cascais. Não me apetece ler. Não me apetece ir buscar o meu iPod à mochila. Experimento olhar o mar. A janela devolve-me a imagem do comboio cheio de gente, de cheiros, de barulhos, de corpos. Só me resta olhar essa gente. É o que faço. Ao princípio limito-me a olhar sem ver. É tudo muito opaco. Aqui, uma senhora senta-se a meu lado e passa a viagem toda a certificar-se que a perna dela não toca na minha, que o braço esquerdo dela não toca no meu braço direito. Ali, um tipo com ar de executivo de regresso a casa com uns headphones sentado em frente de um outro tipo agarrado à mochila e também com headphones. Acolá, um rapaz aguarda a próxima paragem. Segura um saco desportivo. Dos ouvidos saem dois fios. Mais um com headphones. À minha frente um tipo de boné preto, barba russa, fala alegremente ao telemóvel. Ao mesmo tempo que fala olha pela janela. O que ele vê é o interior do comboio. Evita sempre o olhar directo. Como se ninguém percebesse que o faz propositadamente! Termina a chamada. Põe os headphones, fixa o olhar no livro que entretanto sacou da mochila. Do outro lado um tipo mexe no telemóvel, como se estivesse a escrever uma mensagem. Percebe-se que não. Carrega demasiadas vezes na mesma tecla. Percebe-se então que "navega" pelo menu do telemóvel. O seu olhar está fixado naquele minúsculo ecrã como se tivesse vida. Como se fosse vida. Provavelmente espera que alguém lhe ligue. Provavelmente não tem ninguém a quem ligar. Lá à frente uma senhora fala ao telemóvel e outra também. Lá a trás um punhado de gente olha pela janela o interior do comboio. E vêem-se umas às outras como se a realidade que as rodeia estivesse a ser projectada numa tela. O corredor desta carruagem é atravessado por diversas vezes à medida que os destinos se vão cumprindo. E eu ali estou, no meio desta gente a olhar para esta gente. Não me apetece ler. Não me apetece ir buscar o iPod à mochila. Não me apetece ser como toda a gente é. Apetece-me pensar. Por exemplo, os tipos com headphones fizeram-me pensar: engraçado, caminhamos mesmo para uma sociedade da solidão! Uma solidão estranha, bizarra, maquiavélica. Uma solidão da multidão. Uma solidão no meio da multidão. Gente que anda como John Cleese, com passos de silly walk numa burocracia que lhes retira individualidade e poder. Exactamente como Kafka tinha previsto que os homens do século XX iam ser. E continuam a ser no século XXI. Gente que fica em pé para não ter de se sentar ao lado de gente. Gente que liga o telemóvel quando entra no comboio e o desliga quando sai. Gente que tapa as orelhas com headphones e se torna surda perante o mundo real porque não suporta ouvir os barulhos que gente real faz. Gente que vê o interior do comboio reflectido na janela porque não consegue encarar olhos nos olhos a gente que vai dentro dele. Gente que se desliga deste mundo feito de carne, que naquele momento partilha uma carruagem, um espaço, um tempo, e usa todos os subterfúgios para se desligar de qualquer maneira de tudo isto. Gente empacotada em si própria a julgar que os outros não fazem sentido para ela. É isto… é isto que vamos ser no futuro. Que estamos a ser no presente. Uma sociedade da solidão. Uma sociedade que não reconhece os seus conspecíficos. Que se afasta deles. Que se isola deles. Que não estão com eles mesmo estando ao lado deles. Mesmo falando com eles. Uma sociedade da realidade virtual. Uma sociedade sem espontaneidade, sem natureza, sem verdade. Uma sociedade que chora pelo que vê na televisão. Aliás, uma sociedade cuja consciência não passa de um subproduto dos media. Uma sociedade que se comove com a pobreza e o sofrimento e a fome que vê na televisão, que lê nos jornais, e que ajuda ao mesmo tempo que se entretém. E depois muda de canal. É isso mesmo. Uma sociedade da solidão. Próxima paragem: Carcavelos. É o meu destino para esta noite. Saio do comboio, juntamente com mais um punhado de gente. À saída da estação dá-se uma debandada geral. De repente já não há gente, nem barulho, nem cheiros, nem corpos. A estação recupera o silêncio. Uns sobem a rua em passo acelerado. Outros entram dentro do carro, sozinhos, trancam de imediato as portas, ligam o rádio e são de imediato sugados por uma espécie de tubos de tráfego. Querem chegar o mais depressa a casa. Pelo caminho cruzam-se com outros carros mas o que vêem são coisas com luzes conduzidos por gente que vê o mesmo. Chegam a casa. Estacionam o carro. Esperam que o vizinho do 5.º andar suba. A luz das escadas apaga-se e não se acende durante 20 segundos. É o sinal de que o caminho está livre… de gente. Entram em casa. Trancam-se. Fecham as janelas. Ligam a televisão. Choram com as notícias do telejornal. Insultam as personagens da telenovela. Chegam a desejar-lhes morte. Ligam o computador. Falam com os amigos através do Messenger. Enviam uns e-mails. Surfam pela net. Jogam o Second Life. Vêem pornografia. Masturbam-se, às vezes sim às vezes não. Vêem mais um pouco de televisão. Dão de comer aos gatos. Dizem-lhes que eles são a coisa mais preciosa dos donos. Beijam-nos. Vestem o pijama. Deitam-se. Juram para si próprias que são muito felizes assim e que são aquilo que sonharam sempre ser. Esboçam um leve sorriso. Precisamente aquele sorriso de quem acaba de enganar alguém. E consegue. Dormem. Continuam sozinhos. Fazem tudo para estarem sozinhos. Querem estar sozinhos. No meio da multidão. É esta a sociedade da solidão. E é nossa. À partida parece que a imagem do comboio a caminho do purgatório, cheio de sombra de gente que nem sabe dizer como é que ali entrou nem se quer sair, nos leva muito longe da realidade. Na verdade, nunca estivemos tão perto.